domingo, 5 de dezembro de 2010

Certeza


O passado nos assombra.

Mas ouça, meu bem:
esses temidos cacos de vidro,
mesmo se juntados,
nunca serão cálice outra vez.

Recolho-os e os passo.
(Assim ganho mais espaço).

Eu sei,

podem até fazer desses cacos,
campos ricos e ensolarados,
rios límpidos e afortunados,
amores pueris e bem aventurados.

Para mim,
são só cacos.

Incapazes de voltar à mesa
ou de substituir a beleza
das flores que agora vêm;

da fé que me esteia
do néctar que me nutre
e da luz que me mantém.


Ombro amigo




Em meio a pedras,
numerosos buracos,
com pés calejados,
sangrando cansaço

e um velho temor,

avisto uma luz

que, como um casaco,
esquenta-me os lados;
dá-me forte abraço
e um pouco de amor.


Por sorte ou destino,
adeus desatinos,
angústias e afins.

Dizem que Deus,
ao ver-me assim,
pôs ao meu lado
um anjo sagrado
orando por mim.



sexta-feira, 6 de agosto de 2010


Retorne ao meio de onde veio
e esqueça o dia em que me viste.
Leve embora os doces contos
e as fantásticas histórias sobre
um amor que não existe.

Leve, inclusive,
os dias de glória (tão breves)
que, por ti, foram-me dados;
que eu me olvidarei e destruirei
todo esse ódio atravessado.

Uma história de amor se apaga assim.
Afinal, amor, antes um fim triste
que uma tristeza sem fim.

sábado, 19 de junho de 2010

Artifícios



A velha caça perdura,
universal e meticulosa.
Busca-se, a todo custo,
vida leve, cor-de-rosa.

Saias bem rodadas
para curtos passeios em praças.
Sorrisos bem feitos, sinceros;
fáceis e dados de graça.

Saltos e alguma pintura
fortalecem a frágil faceta.

Há até certo brilho.

Mas os cacos de vidro
continuam na gaveta.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Lágrima



Lá no alto da montanha,
nossa fonte já não acho.
Nessa mata, secas folhas.
Secas pedras no riacho.

E no meio de um andar
tão descrente e cabisbaixo,
tão logo avisto teu rastro,
a tristeza me contempla
de uma forma um tanto vil:

faz brotar da minha fonte,
não tão seca como antes,
o mais triste e belo brilho,
que um dia já existiu.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Luz (II)


Fonte de luz que ilumina o seu corpo,
e ao meu estremece.
Fonte tão pura que do mundo, eu vejo,
facilmente se esquece.

Mostre-me a sua alma,
nascente que me cai
como um presente de Deus.
Dê-me essa calma,
que tentarei realizar
alguns dos desejos teus.

Fonte de vida que,
com águas tão verdes e azuis,
faz-me deixar toda a cruz para trás.

Seus olhos:
fonte de amor, meu bem,
da qual quero sorver cada dia mais.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Pedido




A noite, libertina, nos abriga.
Mas logo (e tão logo) em seguida,
vem o dia, casto, nos obrigar.

Por isso, meu amor,
uma prece em oração
quando estou junto a você:

que a noite dure eterna;
que não desatemos nossas pernas;
e que o Sol, um dia ao menos,
esqueça-se de amanhecer.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Dúvida



O ardor que no corpo queima
é a dor que na mente teima.

Aos poucos, com força,
em tudo se espalha.
Como fogo em mata.
Como água em calha.

Divulga e põe em pauta
a grave e humilhante falta
(feita para esquecer).

Domingo, dor e ardor na maca:

sofrimento de amor
ou simples ressaca?

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Luz



Seus olhos são como estrelas


que iluminam com imensa força
as noites cinzas deste morno outono
e aquecem com todo cuidado
as frias manhãs de penoso sono.

Ah, e foi numa dessas noites,
ou dias tão escuros quanto,
que os olhos brilharam mais
ou tanto quanto as estrelas.


E os lábios não puderam frear
o sorriso fugido ao entendê-las.

(Ouvi dizer que se chama amor)

Para mim, tanto faz.
Conquanto se faça
- o que for preciso -
tantas e quantas vezes
forem necessárias
para que as estrelas
outra vez nos una e,

de repente,
seus olhos toquem
e iluminem os meus olhos
novamente.

Sublime ação



Ele pintou o meu rosto
como pinto a mim mesma.

Com gosto.
A esmo.
Um eu que não sou.

Na parede a imagem.
Doce e falsa miragem.

Autoritário regime
imprime
sublime
ação.

Sublima
a sina
em cima
de mim.

Ensina:
não é o meu "eu",
mas sou eu
mesmo assim.
.
*Sublimação - Mecanismo de defesa pelo qual a energia psíquica de tendências e impulsos primitivos inaceitáveis se dirige a metas socialmente aceitáveis: o inconsciente desloca a energia dos impulsos inaceitáveis para realizações consideradas "superiores", como atividades científicas, altruísticas, artísticas, etc.

Costumes da Terra IV




(O destino)

“Vestido rodado
demais, mocinha,
nenhum marido agüenta.
Recusam comida sem sal,
mas reclamam
de muita pimenta.”

Linda menina.
Abastada.
Bem-criada.
Educada
na tradição.

Triste esposa
do amanhã,
que prostrada num divã
busca clara solução.

Costumes da Terra III




(A festa)

Noite.
Terra dos maus
e meninas
da
vida.

Noite

vida
àqueles que não vivem mais.

“Noite?” – dizem:
“Jamais!”
Revela.
Entrega:
“Esses não têm paz”.

Mas digo eu:

Tortas luzes
e sons, basta olhar,
dirão o que o Sol,
mesmo brilhante,
jamais dirá.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Costumes da Terra II



(A escolha)

Marido de bom pai
bom pai
será.

Bom esposo.
Bom pagante.
Bom amante.

Ao mercado
(e à zona)
freqüentemente.
Boa esposa
que agüente
no sofá.

“Marido de bom pai bom pai será”.

E aqueles sonhos loucos
vão morrendo pouco a pouco
em um canto do sofá.

Costumes da Terra I



(A urgência)

Menina dos trinta,
sai de casa logo.
Casa logo.
Dê casa logo.
Dê em casa logo.
Dê jeito de casá-lo
(e amá-lo, talvez).

Moça sozinha na vida
não tem esperança.
Sem sonho, amparo.
Sem pão nem criança.

E na praça ainda se atrevem:

“Cartório logo.
Casório breve.
Barriga Cheia.
Cabeça leve.”


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Egos


Não querem morrer.
Procuram, o dia todo,
pela eternidade.

E, para isso,
enxugam valores,
ferem a própria vida
e sacrificam a verdade.

Dão-se por inteiro.
E insistem para que seus sacrifícios
mudem a história.

Para a imortalidade, clássica receita:
doar a própria vida
em troca de memória.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Janeiro



Deu-me livros e cartas,
numa caixa.
A mim, uma caixa
com seu cheiro.


A caixa acha
sentidos sofridos
perdidos no cotidiano:
logo me lembro que
ainda te amo.


A caixa me taxa:
"baixa!",
"covarde!".
A caixa me arde.


Não tarde,
o cheiro enfraquece
e, mais ainda, adoecem
minhas já abertas feridas.
Meus já mortos canteiros.


No fim, o cheiro se vai;
e com ele, minha vida.
Nesse quente (mas tão frio)
mês de janeiro.